domingo, 29 de maio de 2011

O degelo das lágrimas...

 
“Mas se você apurar o ouvido reconhecerá que chamo.” Escutei uma inconfundível voz autoral balbuciando. Foi como uma repentina agulhada de luz a espetar as espessas camadas das trevas. Se era certo que a sua pobreza de haste afilada pudesse não vencê-las, era certo que daquele dia em diante, ressignificasse o sol a estender ondas de claridade sobre as cabeças. Roberta pousou em mim o mesmo olhar com o qual tinha me recebido naquele dia longínquo em que eu tentava limpar as manchas de sangue que, por um infausto motivo, coagularam sob os retalhos flutuantes do meu vestido e nunca mais saíram. Do outro lado, tinha escutado um barulho de vidro contra vidro se contorcendo em formas mutantes atrás das vidraças, num brinde despropositado que só fazem as almas que se sabem estilhaçadas. Embora a hora não me parecesse adequada, fantasiei que se eu parasse diante daquela exuberante torre de mágica sobre a qual se erguia um labirinto de eras e tijolos toscamente dispostos, eu encontraria seu reflexo escavando retinas e fazendo buracos onde não devia. Às vezes tinha a impressão que poderia gritar seu nome de onde quer que estivesse, que o eco da minha voz não seria devolvido, ela me escutaria. Peguei as chaves de um dos automóveis que estavam na garagem e deixei para trás a confusão ruidosa daquela cidade. Passava da meia-noite quando cheguei à porta do edifício senhorial em que ela se refugiava. Fui sem avisá-la, mas como a luz não estava apagada, aquele foi o sinal a indicar-me que minha visita já era esperada. Parei diante daqueles portões cristalizados que faziam as vezes de vidraça. Contemplei-me longamente em silêncio. O reflexo me mostrava um corpo abandonado, como se a alma que o habitasse tivesse se evaporado. Subi lentamente acreditando escutar sua voz vibrar no vazio. Seu eco parecia desenhar degraus em forma de espiral convidando-me a fazer a passagem de acesso à claridade. Como eu havia suspeitado Roberta não tinha deixado o quarto. Auscultei o olho mágico da porta tentando aproximar-me do orifício. Meus dedos fizeram menção de acionar o pesado batedor de metal, mas hesitei um instante como se temesse levantá-lo e não encontrar ninguém me esperando do outro lado. Dei alguns passos para trás, desconcertada. Toquei a campainha e esperei. Tive que insistir duas ou três vezes até ouvir o rangido da porta e constatar que Roberta aparecia no extremo da sala. Ela parou diante de mim e ficamos nos olhando como dois espantalhos. Tentei reunir coragem para lhe dizer qualquer coisa, mas a saliva havia secado e os pensamentos foram incapazes de formular um único parágrafo. Percebi que algo gelatinoso e turvo gotejava de sua face. Lágrimas. Como se acreditássemos que a cura viesse por aquelas pérolas escorregadias que nos entrecortavam as retinas, ajoelhamos abraçadas até implodimos aquele silêncio maldito, e esquecermo-nos do tempo em que aquelas feridas se abriram. Ficamos abraçadas até a luz do dia metralhar as vidraças e formar riachos de claridade nas cortinas da sala. Senti na alma o verdadeiro degelo das lágrimas. Deixamos a luz morna do amanhecer nos emprestar sua luminosidade, até que a temperatura subisse e devolvesse nossa sobriedade. Na manhã seguinte, nossas almas amanheceram quaradas, como se quisessem se prontificar ao uso, agora, sem aquele cheiro enjoativo de umidade prolongada. Pela manhã, deixamos o apartamento e fomos velejar nas cordas daquele antigo balanço e nos entregamos às iluminâncias daquele céu pasteurizado, desses que só existem quando estamos sonhando, sobretudo, se acordados. Voa...Voa...Voa... Soprava o vento enlouquecendo os meus cabelos, como se quisesse me conceder num embalo a passagem de volta para a eterna juventude da alma. Levantei a palma da mão num gesto de rendição e perdi-me naquelas alturas. Quando quis descer, do nada, ela empurrou o balanço ainda mais alto como se quisesse ouvir minhas gargalhadas. Compreendi que os paraísos perdidos estão gravados nas retinas dos que sonham o voo e acreditam que a luz possa ser alcançada até num sorriso. Falo desses que nos arrancam as pessoas amadas quando querem alforriar nossas asas. Mesmo naquelas noites em que a vista fica molhada sob o pára-brisa das pálpebras e nenhum limpador parece capaz de desembaçá-las. Sempre que escrevo um texto e o deito ao lixo, sinto que sou eu quem ali fico. Então fiz o que ela havia me pedido. Retirei-me de lá, desamassei as bordas e reciclei o grito. Com Roberta aprendi que o gelo é uma forma tão precária como as outras. Ela dizia que sua aparente solidez é uma catedral de transparência, em suarenta ruína. As lágrimas são um estado inevitável, uma latência dessa nossa solidez, por vezes pesada, mas necessária para relembrar o que nos falta - completei fazendo mais uma de minhas pausas dramáticas. Deixei que escoassem. Deixei que lavassem. Deixei que levassem. Sob a luz intensa que daquele sol interior emanava, levantei os olhos para o céu e detive-me durante alguns segundos. E o que vi ao abaixá-los, não foi mais aquela ferida negra e sem fundo, o que vi, meu Deus, foram minhas pernas voltando a balançar sobre o mundo.
 

Pipa


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