quinta-feira, 27 de março de 2008

Aconteceu com a gente...



Sobras de minha existência pela casa, escondidas para não irritar a nova mocinha. Meu pijama sufocado num canto da gaveta para que nenhuma lembrança respire. Meus chinelos abduzidos no meio da "sapataiada", tão pequenos que quase inexistem ou poderiam passar tranqüilamente por pares de criança. Fotos, milhares delas, guardadas sem carinho, uma preguiça triste de arrumá-las em álbuns. Estão lá, paralisadas em momentos felizes, tradutoras de uma vida que quase foi, trancadas porque o que quase foi não pode atrapalhar o que ainda pode ser. Talvez um fio de cabelo, o último deles, esteja nesse momento sendo varrido e levado pelo vento forte e solitário que não deixa dúvidas que o inverno chegou. Inverno que era sempre comemorado porque eu sabia que ele não sentiria tanto calor para dormir e eu poderia ser abraçada de conchinha o tanto que desejasse.
Saudade não é ex, tampouco amor. Mas a vida da qual abrimos mão por um sonho (ou por um erro) é passado. E de escolhas e de perdas é feita a nossa história. Não há nada que se possa fazer a não ser carregar por um tempo um peso sufocante de impotência: eu escolhi que aquele fosse o último abraço. Agora é outra que se perde em ombros tão largos, tomara que ela não se perca tanto ao ponto de um dia não enxergar o quanto aquele abraço é o lado bom da vida. Da vida que te desemprega mesmo depois de tantas noites em claro e de tantos beirutes indigestos. Da vida que te abre uma porta que você jura ser a certa mas quando resolve entrar descobre uma desilusão e outra mulher esperando no quarto. Da vida que te confunde tanto que você quer se afastar de tudo para entendê-la de fora. Da vida que te humilha tanto que você quer se ajoelhar numa igreja. Da vida que te emociona tanto que você não quer pensar. Da vida que te dá um tapa na cara pra você acordar e não tem ninguém pra cuidar do machucado e dizer que vai ficar tudo bem. Da vida que te engana. Aquele abraço era o lado bom da vida, mas para valorizá-lo eu precisava viver. E que irônico: pra viver eu precisava perdê-lo.
Se fosse uma comédia-romântica-americana, a gente se encontraria daqui a um tempo e eu diria a ele, que mesmo depois de ter conhecido homens que não gritavam quando eu acendia a luz do quarto, não tinham uma mania insuportável de não conseguir tomar decisões sozinhos, não amavam os amigos acima de tudo, não catarrava na rua, não cantavam tão mal e não tinham a mania de aumentar o rádio quando eu estava falando, não ligavam se eu confundisse nomes de comidas, nomes de capitais, movimentos artísticos, datas de revoluções e nomes de queijo, era ele que eu amava, era ele que eu queria. E ele me diria que, mesmo depois de ter conhecido mulheres que conheciam a Europa e não entupiam o ralo com cabelos, mulheres que tinham nascido em bairros nobres e charmosos de São Paulo, mulheres que arrumavam a cama e não demoravam tanto para sentir prazer, não entravam de sapato no carpete, não tinham os dentes da monica, não eram tão assustadas, não brigavam por causa de motos, não reclamavam do ar-condicionado e nem tinham medo de perder a mãe ou transtornos obsessivos compulsivos, era eu que ele amava, era eu que ele queria. Mas a realidade é que não gostamos desses tipos de filmes fracos com final feliz, gostamos dos europeus, onde na maioria das vezes as pessoas sofrem e perdem, assim como aconteceu com a gente...


By Flor...

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