Com o tempo você irá me esquecer, assim como se esquece as chaves sobre a mesa, como se esquece as tristezas num dia qualquer de domingo, como se esquece de observar as flores se abrindo na sua estação. Você vai, e algum dia olhará para nós de um lugar já muito distante, mas um sentimento de ontem poderá se balançar. Esquecerá com a obrigação da tua nova vida, esquecerá porque é o que restará depois de inúmeras alternativas. Esquecerá de aquecer meus pés no inverno, esquecerá de procurar livros que ninguém tem, esquecerá as canções que escolhemos para eternizar nossas histórias, esquecerá o som da nossa voz no meio da madrugada, esquecerá de viver o imprevisto que nos assaltava, esquecerá nossos desejos mais secretos: nossa boca com gosto de mel, nossos corpos embrulhados na fita, nossa garganta arranhada das profundidades das palavras perdidas. Me esquecerá quando cruzar comigo em alguma rua, a distância envergonhará nossa nudez. Me esquecerá quando outra poesia te surpreender e te ler mais do que a mim. Me esquecerá fixando os olhos em outras costas, em traços de outras tatuagens. Me esquecerá nos domingos, em outra sala, novos sofás, parecidos carinhos. Talvez também te esqueça. Penso (e sei que pensas) em quem, um dia, nos roubará de nós. O amanhã nos atravessará com a sua covardia. Sem perceber estaremos em mapas desiguais. Haverá saudade, haverá vontade e nada poderemos fazer. Colheremos a escolha do agora, inevitável. Será isto, previsto. O caminho é sempre para frente, um trem não tem escolhas, e aqui nos colocamos de passagem. Amadureceremos na dor, não na culpa. Teremos novas mãos entre as nossas. Nossos planos conheceram seus nomes, nossos filhos não reconhecerão nossos rostos. Nosso amor não conheceu a vida, ficará sempre por nascer, prematuramente.
Cáh Morandi
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